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No ano em que a artista japonesa comemora 100 anos de vida (77 deles vividos no Brasil), quatro exposições traçam um panorama de sua vasta produção, que alcança mais de cinco décadas de constância em investigações envolvendo pintura, escultura, desenho e gravura. A relevância de sua produção, cujo reconhecimento se constrói desde a década de 60, perpassa uma trajetória cujo marco inicial envolveu a participação no Grupo Seibi (ao lado de Flávio Shiró, Manabu Mabe e Tikashi Fukushima, entre outros) mas que se estabeleceu como uma referência em coerência e obstinação na investigação sobre cor e linha, chegando a uma posição singular da compreensão destes em qualquer dos suportes utilizados. Além da mostra que a Galeria Nara Roesler inaugura neste 21 de fevereiro, estão previstas mais três exposições no instituto que leva o nome da artista.

A propósito da arte de Tomie Ohtake, o curador Paulo Herkenhoff certa vez observou que “o espaço é um campo de instabilidade em busca de repouso”. Ao analisar suas obras mais recentes, tem-se a impressão de que a energia criativa da artista segue um caminho correlato porém inverso: seu trabalho é como um campo estável (no que se refere ao rigor técnico) em busca permanente de movimento, transformação. Já em 2005, o curador Agnaldo Farias, responsável pela seleção desta mostra, observou que, não obstante a riqueza plástico-formal de seu trabalho até ali, a diversidade de Tomie Ohtake então “surpreende-nos mais uma vez”, com algo totalmente diverso.

A análise permanece atual: neste grupo de trabalhos, pinturas e esculturas que datam de 2011 e 2012, a artista atinge extremos de sutileza e fisicalidade com sua habitual precisão na escolhas técnicas – que envolvem um gama espantosa de pincéis, uma variedade riquíssima de materiais e pigmentos, um raro conhecimento (que ela é capaz de transmitir) sobre seu manejo, e também sobre o posicionamento da linha no espaço tridimensional, no caso das esculturas. Mas, mesmo mantendo seu rigor usual, Tomie Ohtake consegue se reinventar em surpreendentes composições que revelam novo fôlego em sua pesquisa, principalmente quanto à profundidade e à luminosidade das telas (de dimensões variadas), e quanto ao simples e intrigante dinamismo cinético das escultura baseadas em linhas. 

A artista afirma que esta série de pinturas constitui uma busca pela transparência que perpassa a tela. Em especial na obras em que predominam azuis e verdes, Tomie Ohtake parece criar diferentes níveis de cor ao mesmo tempo materiais e espectrais, com abismos de um negro ligeiramente cálido que é obtido, na verdade, a partir de tons de roxo. Naquelas telas mais luminosas, em tons amarelos, um efeito similar provoca a impressão inversa, fazendo da pintura fonte de irradiação luminosa. Já suas esculturas são um prosseguimento de suas experimentações sobre a cinestesia da linha no espaço, criando movimento e dinamismo a partir de formas que sugerem uma dinâmica de balanço e repouso.

Que essa descrição não leve a uma compreensão dessa produção como sendo baseada numa busca pelo efeito em si. A trajetória de Tomie já revelou à exaustão seu compromisso com uma pesquisa meticulosa que a levou a um profundo entendimento de propriedades cromáticas como veladura, transparência, opacidade, irradiação, retração e de relações de movimento, repouso, equilíbrio e tensão que envolvem o uso escultórico da linha. 

Para galgar essa depuração, Farias lembra que “uma das bases do projeto poético de nossa artista consiste na insistência em problematizar aquilo que outros têm na conta de coisa dada, sobre a qual nada mais há a ser dito”. Como um campo pleno de gradações de vibração cromática e linhas, sua obra convoca propriedades do olhar que raramente são abordadas, mesmo no momento atual, em que a infinidade de imagens disponíveis (inclusive as da arte) daria a ideia de se terem esgotado as possibilidades de renovação da experiência visual.

É, afinal, muito pertinente a citação de Paulo Herkenhoff que abre esta apresentação, uma descrição que se aplica com precisão principalmente a suas esculturas: na obra de Tomie, “o espaço é um campo de instabilidade em busca de repouso”. Mas, tomando-o metáfora, trata-se de um repouso impermanente, que a cada novo passo da pesquisa da artista abarca novas sutilezas, em superações que não anulam a consistência e a pertinência do que veio antes e ainda a mantêm, centenária e consagrada, plenamente contemporânea.

 


sobre o curador
Mineiro nascido em 1955, Agnaldo Farias é doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (1997), onde atualmente é professor doutor (no Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Como curador, Agnaldo Farias assinou co-curadorias de Bienais de São Paulo (2010, 1996, 1992), entre inúmeras outras exposições. Foi curador-chefe do MAM-RJ (1998/2000) e diretor de exposições temporárias do MAC-USP (1990/1993). É consultor de curadoria do Instituto Tomie Ohtake e autor dos livros As Naturezas do Artifício - Amélia Toledo (Editora W11, 2004); Daniel Senise - The piano factory (Andréa Jacobsen, 2003); e Arte brasileira hoje (Publifolha, 2002), entre outros.